quarta-feira, 30 de março de 2011

A arte de macaquear

Sérgio Buarque de Holanda já havia me alertado (curioso o fato de eu achar que as linhas lidas são, na verdade, confissões vindas de amigos íntimos) para o insistente vício brasileiro: “macaquear” as vidas alheias. Para ele, os verde-amarelos estão sempre a
imitar a cultura dos outros países. Uma expressão da nossa conotativa baixa auto-estima. E digo mais, brasileiro importa até a dor dos outros, sem ligar para a sua própria. A omissão das nossas próprias mazelas, que, uma vez olhadas de perto, nos arrebatariam a alma e o coração.

Olhamos a tragédia do Japão, tanto sofrimento e carência. As empresas fazem doações, o Brasil todo se comove e sonha como seria ajudar, de perto, o outro lado do planeta que chora. É a coisa certa a se fazer. Se o mundo não se unisse nessas horas de dor, então tudo iria, de fato, por água a baixo.

Mas e o Brasil? Em que a África está na nossa esquina? Não falo dos brasileiros das tragédias, em que o país se mobiliza, aos trancos e barrancos, para dar suporte. Digo do Brasil de todo dia, do caos inflamado do começo ao fim. Do sofrimento ao qual fechamos o vidro porque já é rotina. Talvez falte sangue-frio para abraçar as ruas sem esgoto, as crianças que trabalham na hora de dormir e as milhares de pessoas que passam fome na terra dos frutos. Toda essa caridade à dor que vive longe serviria ao deus-nos-acuda que está quente, bem perto da gente.

Macaqueando o que disse uma vez Nelson Rodrigues, brasileiro gosta mesmo do negro que vive longe, o negro americano. Dos obamas tropicais, ninguém que saber.

sábado, 12 de março de 2011

Baile de Máscaras

Ela usava um vestido preto de bolas brancas, de um forro tanto quanto exagerado, que deixava seu corpo fresco naquela semana quente de fevereiro. No cabelo negro e liso havia uma tiara espalhafatosa e angelicalmente combinada com a roupa, de modo que acomodava as madeixas numa arrumação assimétrica de uma beleza pueril. Ele, parecia mágica, postava-se com os mesmos tons da aquarela da menina a quem pegava pela mão. Ela se imaginou na Europa dos romances, a Colombina disputada e ele o Pierrot apaixonado. A história chegava a melhor parte, a hora da possibilidade do sonho, o final feliz do conto invejado. Nada poderia dar errado naquela terca-feira gorda de felicidade.

Ele não estranhou a maquiagem histérica, o glitter, o pó e a tinta destacavam os olhos verdes escuros que brilhavam com o sol. Ela ignorou o chapéu ridículo que ele escolhera sem nenhum estilo. Dançaram juntos sem música, se abraçaram sem pudor e se beijaram tão forte que era difícil saber quem era quem naquele momento de amor. O cabelo liso pertencia às mãos grandes que tentavam roubar pra si o corpo da amada. O pescoço másculo era seu porto seguro, no qual se apoiava sem medo, segura que não iria ao chão, apesar de ter os membros fracos de prazer. Olho com olho, nariz com nariz. “Como ela é linda” pensou ele. “Eu o quero pra sempre” suspirou ela.

E no auge daquela dança sem trilha sonora, tal como se finalizam os grandes atos e peças teatrais, chegava a hora do gesto final que compõe os grandes duetos. Na hora que o homem gira a parceira em repetidas rotações, levando seu corpo para longe como quem afasta, para num segundo depois trazê-lo ao aconchego de seus braços. E ela rodou, rodou e rodou, tal como as mulheres do filmes de amor e os casais dos finais felizes das óperas, certa que seria trazida ao peito firme do homem que a esperava. Mas não foi assim. A corda que deveria levá-la de novo se partiu e ela se quedou imóvel, vendo os lábios vermelhos e voluptuosos do amado darem um sorriso charmoso, porém, agora, indecifrável. O final de uma história sem tempo para ser vivida chegou de fato.

Ela não era Colombina, ele não era Pierrot. Era uma simples terça-feira de Carnaval.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Cru e Pálido

A morte cala. Cala enquanto deveria liberar as palavras prisioneiras das lembranças.

Cala porque desassossega sensações que se julgavam enterradas. E se eu não fosse desse ofício apaixonada, afundava o esforço de ater-me aos meus maiores novelos, emaranhada. A morte tornou o prazer em sacrilégio. Achou levar com alvedrio à cova abençoada, o amor de tanta gente preso às vidas sufocadas. Esse corpo que ainda vive viu morrer de si uma parte tão amada.

...

Agora tudo é mortal. Antes, havia a dúvida nas entrelinhas. O mundo me parece, enfim, tão instável, e eu tão impotente. A morte tirou de mim a minha crença infantil num final feliz. E o pior de tudo, arrancou brutalmente do meu corpo, a força inigualável das palavras. Quanta coisa a gente quer fazer e não faz, quanta coisa quer ser dita e não é. Pra depois vir a morte e jogar em planos sujos, a nossa incapacidade de viver.

Logo ele, tão forte. Já dizia seu codinome Imperador, deixou a certeza que foi muito antes de fazer todo o bem que arquitetava. Lá estava ele, distante, reinando um trono tão seu e tão imortal.

As palavras, outrora tão vivamente livres, agora tão arduamente decifradas. Agora não tem mais Tio Benito a tecer comentários sobres meus textos, a incentivar a minha vontade de viver das palavras, e a encher meu coração ao se dizer orgulhoso da sobrinha que era sangue vivo do seu sangue. Foi sem saber, que alguém bem longe, falava fascinada do seu modo de viver e esperava ansiosamente por suas repentinas aparições na minha vida. Foi sem saber que há muito planejava com cautela escrever o tamanho da admiração e do desejo de ser um pouco do que ele é, mas sempre deixava pra depois.

Agora eu entendo o som aflito das palavras que estão condenadas ao anonimato. Como não há pior tristeza, à morte resta algum sentido. Que o prenúncio da Inesperada, plante em nós uma vontade louca de viver e sair gaguejando dizeres doidos para ganhar corpo. Que a morte sirva para dar luz ao grito forte da aparente escuridão do coração de toda gente. Que as almas ingênuas prevejam a dor da solidão e não se condenem a chorar o amargo do não dito.

E esse texto, por mais que ajude a tirar o peso que ando carregando, de tão fraco, tornou-se pálido.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Um pedaço de Verão

Os pés tocaram a rua cinza de casas coloridas. Seis crianças correram na direção da máquina que viera torná-las protagonistas. Nos seguiram sem mãe gritando, babá atenta ou pai preocupado. Guiaram-nos para o telhado proibido da casa 47 e a esquina do cano quebrado. Em cada vértice, uma rica vista que a contorna e espreita os escondidos. Do Morro da Conceição, se vê um Recife lúdico. Ao subir as ladeiras é melhor não voltar. O resto do mundo não é tão bonito de verdade. Eles vêem as casas tais como formigas, os prédios que fingem ser barcos remando para o lado oposto, sem rumo, nadando sobre as mazelas da cidade. O sol se põe do lado esquerdo do quadro, completando o cenário e abrindo a cortina para o ensaio do céu naquele pedaço da capital. As estrelas entram e a noite dá fim ao jogo de futebol no campo da praça. Os jogadores de dominó trocaram as peças por umas cervejas geladas numa mesa amarela de plástico. Mais um sorriso de um morador que se satisfaz em nos ajudar.

Todos se conhecem. Esta noite alguns se encontrarão no Bar da Geralda, outros no Conselho de Moradores e vários deles vão à missa agradecer à Nossa Senhora da Conceição pela proteção quase exclusiva. Esbarrarão, esses, em alguns turistas e gente lá de baixo. Lembra-me minha Campina Grande da infância, cheia de vizinho, poucos carros e várias mesas na calçada.

A vista do Morro revela um Recife que parece ignorar sua beleza. Será a beleza do resto da cidade vista do morro ou a beleza do morro que deixa a cidade mais bonita?

Descubro, meio que sem querer, que o inverno afasta os turistas de lá. Franzo os cenhos e me indago se em minha cidade faz frio. Me desfaço: Em Recife tem inverno e eu nunca senti de verdade. Uma cidade dentro da outra. Sinto uma brisa fria vir de um horizonte sem andares de concreto no meio do caminho. Olho para trás e procuro meu prédio naquele amontoado cosmopolizado intocável e longíguo que inveja o silêncio da casa da Santa. Volto ao pedaço da minha infância no alto da ladeira e sigo viagem. A descida de volta dura alguns minutos, mas vários na linha do tempo. De repente, as buzinas, as gangs de carros, motos e muito barulho. Os transeuntes se ignoram e ninguém se arrisca a viver pelas ruas e calçadas. Não há atores de verdade para lentes em busca de vida.

Refaço-me: há muito calor em Recife. Para se aquecer, basta entrar à direita onde a placa verde indica: Morro da Conceição.

sábado, 1 de maio de 2010

Curto- circuito

Sexta feira. Uma enorme enxaqueca me faz companhia. Cansa. O mundo, às vezes, cansa. Mergulhei os ouvidos na água, hoje, para não escutar o barulho da rua. Que sensação gostosa essa desse mundo mudo e submerso. Tomei cuidado para não afundar nos meus devaneios internos e voltei à realidade seca.

Acontece que perdi meu celular um dia desses. Aí começa assim, a moça da Claro oferece um aparelho gratuito para eu me sentir privilegiada. Mais uma estratégia das operadoras telefônicas para nos ludibriar.

- Não tem sem ser Itouch? Esse negócio de dedo na tela é muito complicado.

Só Touch pra lá, Touch pra cá… Precisei aderir a essa tal modernidade. Por fim, a moçinha ratificou que as ligações seriam bloqueadas assim que o limite fosse excedido. Discando à vontade, confiando no bom negócio. Porém, parece que não li o contrato direito e esse tal serviço só é feito a partir do terceiro mês. Resultado: pagarei o quádruplo do que costumo. Xingo a Claro, os eletrônicos e toda a modernidade. Meu pai entra com sua frase costumeira: São apenas máquinas, a culpa é sempre de quem as opera.

No carro, tento ativar o Bluetooth e quase bato. Mais uma tentativa vã de deduzir o que não vem no manual. Da janela, sob o sol quente, lá está o homem que não me sai da cabeça. As costas negras e suadas, num esforço quase sobre-humano de fazer andar sua cadeira de rodas para chegar ao outro lado da rua. O carro do lado buzina. O vidro fumê não me deixa identificar a pessoa cujo tempo é precioso demais para não esperar um minuto pelos braços fortes e ágeis que carregavam, além de membros estáticos, um mundo intolerante.

Lá se foram, o homem em sua corda bamba para enfrentar mais uma árdua travessia e o carro escuro azedo com sua tecnologia de ponta. Meu pai tem razão, a culpa é nossa, dos operadores. Desisto do Bluetooth e sigo com raiva, muita raiva de um mundo que poderia facilitar a vida do cadeirante pobre com bizarrices tecnológicas. Mas prefere criar buzinas e Itouchs para formar consumidores que se deixam enganar e transformar almas em máquinas modernas e amargas.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Querida Rita

- Brí, escreve sobre isso.

Era 08 de maio de 2009, quando seus olhos verdes de jardim me impuseram esse desafio. Desde então, certa fobia às páginas em branco me foi criada.

Um dia, uma linda Ester me contou o que algum escritor falou sobre o baú de lembranças que levamos com a gente. Essa caixa mágica guarda as pequininíssimas coisas da vida: frases, olhares, momentos, conversas, sentimentos que outrora ousamos ter. Afinal, nós, meros mortais, nunca seremos capazes de lembrar tudo que nos ocorreu. É preciso um dispositivo poderoso que armazene, ao menos, certas horas essenciais na nossa trajetória.

É muito bizarro quando certo momento lá trás lhe foi incrivelmente importante e a pessoa que lhe acompanhou nem lembra. Isso vive acontecendo. Quando me contam dias engraçados sob uma narração empolgada, eu me esforço para reviver, e nada vem à mente. Ou, por exemplo, quando lembrei a uma amiga algo que foi de extrema importância na minha sanidade mental: bem novinha, eu contei à Júlia de uma voz que eu escutava, ou achava escutar, todos os dias antes de dormir e morria de medo. Ela então, disse-me que, com ela, ocorria o mesmo ritual. Senti-me incrivelmente confortada e todo dia de noite imaginava minha amiga sentindo o mesmo pavor e tudo melhorava. Alguns 10 anos depois lembro Júlia desse protocolo muito normal que supostamente nos acontecia. Ela franziu a testa, sorriu e negou passar pelo tal ritual, nem mesmo lembrava ter me confortado daquela maneira. Uma década depois me sinto, então, uma criança incrivelmente anormal e, pela primeira vez, penso “que diabos era isso que me acontecia?”. A reflexão veio tarde em questão de tempo de vida, mas na hora certa para eu não surtar. Para Júlia foi uma mentirinha saudável de criança, sem muitos afins. Para mim, algo cultivado bem no fundo, um bem imensurável. Minha companheira fazia jus ao seu posto.

A coisa fantástica é que, às vezes, essas caixas se encontram. É uma delícia quando criamos ciência que o baú de memórias de outra pessoa guarda um momento que foi igualmente especial. E foi isso que aconteceu no dia cujo deu início a esse texto. Aniversário de Carlinha, roda de amigos, violão, dança, gargalhadas e uma intensa cantoria. Se havia males para espantar, o fizemos com o auxílio de um escudo contra energias negativas que pairava sobre nós. Essas sandices abstratas que nos substanciam. Como disse Manuel De Barros “as coisas que não existem são as mais bonitas”. Tão lindas que extasiam o coração e dá uma vontade de recitar amor aos presentes que nos enche de alegria, mas, claro, as declarações se limitam a um olhar discreto e despercebido ou um pensamento cheio de vida, mas que se julga sozinho. Foi então que nesse momento de pieguisse particular, Ritinha me olhou e postou o desafio de escrever sobre aquele momento. Julguei minutos antes que, ocupados em se divertir, ninguém ali pararia para pensar o quanto bonito é esse negócio de amizade e de horas que, de tão simples, nós fazem tão bem. Mas eis que estava errada... Esses pensamentos podem sofrer de solidão nas cabeças alheias, mas existem na mesma proporção de horas felizes.

Desde então, me certifiquei da minha incapacidade em escrever sobre certas coisas genuínas, boas e tão importantes. As páginas em branco destinadas a esse desafio ficam sempre da mesma cor ou rabiscadas de tentativas inúteis comparadas à grandeza da intenção. Esse ofício de traduzir as sensações gostosas e tão especiais da vida deixo para os olhares discretos e os sorrisos amorosos. Aqueles que Ritinha me abriu a mente para não deixá-los despercebidos ao meu lado nas boas rodas de conversas em uma noite de amigos.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Que saudade do domingo

Entre o corre-corre das pernas grandes, no meio da praça de alimentação, dá-se início ao show: uma criança faz do chão sujo seu parque de diversões, das luzes incandescentes, os holofotes, e todas as pessoas ao seu redor, o público. Nos adultos surgem, discretamente, sorrisos carinhosos. Percebi o que me atrai tanto numa criança: sua virgindade no quesito realidade. O olhar fantasioso delas brota, em mim, um enorme desejo de voltar no tempo.

A responsabilidade e a falta de tempo acabam com pessoas. Quando eu era pequena, o único encargo que tinha era almoçar com meus pais na mesa da cozinha. Tomada pelo desejo rebelde infantil, sempre tentava me livrar desse ofício. Porém, nunca me era concedida a regalia de fazer refeições ao mesmo tempo em que via TV na sala. Nos dias em que, por ventura, não acontecia o tal almoço familiar, enchia o prato e me deliciava por horas diante de algum programa divertido. Todo mundo reclamava que eu comia muito devagar, mas, para mim, era um exercício de liberdade.

Agora, meus almoços devem durar exatos 15 minutos, isto é, quando acontecem. E não existe mais a possibilidade de driblar as responsabilidades. Mas sempre faço questão de sentar-me, ligar a televisão e, nem que dê tempo apenas para os comerciais, desfrutar de meus míseros momentinhos de liberdade. Nos dias de alegria, quando, por acaso, surge tempo, demoro uma hora nesse ofício e puxo para os programas sem conteúdo que dão sopa essa hora da tarde... Ai como me cheira a infância.

Antes, o domingo era uma delícia: dia de ir à banca comprar “turma da Mônica”, sair com a família, assistir filmes todos juntos, sushi com namorado, de aprender a cozinhar, de café e cinema com as amigas. Eu amava o domingo. Agora, esse dia tão bom, virou o tempo que de fazer tudo que não deu durante os dias úteis, e todas as coisas gostosas de viver no tempo livre tem um pensamento como pior inimigo: “tenho tanta coisa pra fazer depois disso.” A responsabilidade deixa as pessoas mais chatas, isso eu já tinha idéia, mas tirarem meu domingo... Foi crueldade.

“Mãe, olha a bolsa do Ben 10 dele!” Sentada na sala de embarque, observo uma cena grandiosa ganhar palco: três crianças se conhecem, falam de seus amigos da escola e ficam íntimos dos brinquedos que a bolsa de um deles abrigava. Nem percebiam que, ao seu redor, uma platéia deliciada sorria quieta e nostalgicamente. Eu tentava lembrar a última vez que almoçara em casa.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Uma jóia de terapeuta

São, agora, os dedos de amor que se movem. Por ela, a minha terapeuta. Ela tem fé convicta em Deus e reza por mim, relevando minhas convicções, todas as quintas-feiras sagradas na igreja; não passa um dia sem consultar os astros do signo para saber sua cor e planeta da vez; conhece a função de todos os nutrientes e alimentos pelas aulas semanais do globo repórter; faz juízo de valor de todos do elenco da novela das 8; tem um coração mole, um sorriso largo e nunca deixou alguém entrar na minha casa e sair sem notar sua simpatia, assim como não me deixa sair da cozinha sem estar afundada em uma paz interior.

- Você não é filha de Deus, Tânia - Digo, entrando no seu clima e me dando conta que, durante os 20 anos que nós convivemos, nunca conheci o seu mau humor.

- Ô nega, porque tu fala isso? Mau humor não faz ninguém feliz, nem eu nem quem ta perto de mim.

Todos os dias minha sessão terapêutica começa no café, e quando, por vezes, um mal-estar desses bem comuns aos meros mortais vem ao meu encontro, olho para ela e imagino a longa caminhada, o ônibus lotado e o etecetera que tem que enfrentar diariamente, mas só vejo a simpatia e uma tranqüilidade, eu diria, divina. Ouço suas notícias e visões de mundo, os poderes da laranja, do queijo, da banana e do inhame, os sonhos que a afrontaram na noite anterior, e, geralmente, nem consigo identificar as boas e ruins novidades, já que são todas cantadas num ritmo apaziguador. É como se criasse um escudo aos tempos ruins: uma alegria intocável. Uma tapa na cara na maioria por aí, que insiste em se considerar eterna vítima do mundo. Como me parecem tolos esses seres todas manhãs, quando peço emprestado o sorriso sincero de minha terapeuta e vou embora leve. Uma das melhores companhias e lições, eu diria, de todos os meus dias. Há 20 a mesma coisa e nem me dava conta, até descobrir que sou disso, dependente.

Tânia deus aos seus dois filhos melhor educação que a maioria dos que freqüentaram universidades, e nem faz idéia que o mundo provavelmente estaria a salvo se todos seguissem seus conselhos matinais. Falta de escolaridade e pobreza são os grandes agentes das mazelas da nossa sociedade, mas não justificam tudo. Pelo menos é o que mostra a mais eficiente professora que já tive. Como disse Saramago, dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos. Valor intacto, que cresce com a gente e nos faz escolher os caminhos. E, provavelmente, depende menos das lições escolares, do grau de educação ou dos livros que lemos e mais das jóias raras que encontramos na nossa vida.

- Porque você é um anjo. Respondo, dando um beijo no seu braço enquanto descasca uma cebola e nem chora.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Um delicioso peixe fora d´água

1968, a União Soviética invade a capital da Tchecoslováquia, no movimento conhecido como a Primavera de Praga. Em algum lugar da Paraíba, dois estudantes conversam:

- E essa invasão?

- Mesmo se a gente não entende, se foi a União Soviética, a gente aceita.

Essa estória que meu pai contava me lembra que estou sempre fugindo de limitações. Prefiro ser atéia e apartidária por ter a sensação de liberdade de se eu quiser, por exemplo, adorar, um dia, o passarinho que fez ninho na minha casa ou não crer em nada, e poder ouvir todas as propostas eleitorais sem preconceitos. Tenho receio de grupos fechados por observar certo individualismo coletivo: torna-se tão interessante e confortável olhar para os nossos ditos semelhantes, que o mundo de fora vira uma questão secundária. Enquanto que, para mim, existe uma deliciosa pretensão em sentir-se diferente. Foi preciso viajar para o ver o quão pequeno era o meu mundo. Primeiro foi o planeta multicolor, tão grande e tão complexo. Veio então a sensação verdadeira de que não conhecia nada, e a minha cidade, uma hora tão grande, surgiu como um pequeno ponto lá no Brasil. E depois foram as pessoas, inexistiam ali quaisquer semelhanças com minhas auto-definições. Eu nada sabia de mim e quem dirá dos que eu julgava distantes. Tornaram-se grandes e eternos amigos ou protagonistas de inesquecíveis conversas, pessoas que naquele ponto minúsculo passariam despercebidos, diferentes demais. É claro que me considerar fora de certos grupos já é, em síntese, pertencer a uma outra parcela. A forma de sentir-se livre destoa entre as mentes, e no meu âmago, foi a encontrada para me satisfazer. Nínguem, em seu interior, está livre das amarras repressoras e invisíveis do mundo que vivemos.

Afinidade não é nada mais que estado de espírito. Assim como o amor e todas as outras boas sensações da vida. As pessoas amam quando se abrem para isso. As relações não têm nada a ver com o gosto musical ou preferência de lugares para sair. A convivência e o começo delas talvez, mas tudo acaba dependendo da sua vontade interior e a necessidade de se abrir a novos ares. Identificação se amplia ao encontro de boas energias, a paz que alguém possa lhe oferecer e não ao conforto de visões restritas. Nem todos os seguidores de alguma ramificação são da mesma radicalidade do jovem paraibano do começo da história, mas atento apenas para a visão turva que por vezes nos oferecem os dogmatismos e as frases que começam por “eu sou” e precedem idéias que podem, com o maior dos direitos, não convir amanhã.

- Hoje sigo apenas a democracia, seja de qualquer lado, se for contra a soberania popular estou fora, se fizer a favor apóio. Diz, hoje em dia, o primeiro dos jovens lá de cima.

De uma estimada sabedoria os cabelos brancos devem gozar.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A Classe dos Ais.

Ai por tudo. Pelo dever, pelo direito, pelo homem, pela menina, pelo elevador, por mero costume. Além de média, nossa classe é dos Ais. Faça um exercício e você nunca vai ser o mesmo: Conte amanhã todos os Ais do dia, à noite procure um tylenol ou heike. Foi o que aconteceu comigo sexta feira passada.

O Ai está em toda a parte, toda conversa. Quanto mais se tem nessa vida, mais se reclama. Dou luz a minha rotina, saio por aí e ele está sempre me perseguindo. Implícito ou à mostra em sua frase padrão: O Ai que saco. No dia em questão, atentei para sua presença inflamada logo de manhã no salão de beleza: foco central de pessoas que, se estão lá às 11horas da matina, é porque não tem muita coisa estressante pra fazer, né? Talvez não, mas poupem-me dos Ais, faz favor. Poderia enumerar 1000 com mais graves ais. Depois de perceber que os Ais estavam com a gota, continuo a jornada, pensando nisso. Tinha sempre alguém para reclamar: da cadeira, dos planos, do calor, da aula. Parecia feira: tem ai pra tudo e todos! Infundo-me em um mal-humor profundo, visto meu Ai: que saco, o povo só faz reclamar. Eis que surge, em sintonia no meu dia, a surpresa na segunda aula, a revanche da minha indignação: uma palestra dos integrantes da Fazenda da Esperança, um retiro no qual jovens de dependência química se isolam na intenção de se curar. Nada de Ais. Através de relatos emocionantes, falaram suas trágicas histórias, drogas, mortes, roubo, miséria, família desestruturada. Mas, cadê os ais? Um banho de água fria em todos os que se postavam sentados e admirados pela força e, inconscientemente, alegria com a qual se falava da vida ali na frente. Quanta diferença gritante. Eles tinham todos os motivos para passar o dia reclamando de uma tal energia divina que os deu aquela vida, mas havia uma inversão grotesca: são os de barriga cheia que mais encontram Ais. É um costume terrível do nosso mundo fechado.

Tem Ai que é necessário. Mas falo dos sem propósito, dos que somos fiéis seguidores por hábito, daqueles com cor ambiente, que se infiltram amenos no desenrolar da conversa. Se reclama da vida, de quem está perto e daquele que passa ali, com roupa e atitude suficiente para ser “incomodável”, até os seres distantes e desconhecidos merecem lotes de ais. Saio da palestra, volto à realidade, olhos inchados, peito amargo: a vida pode ser injusta, mas mais ainda aqueles que falam dela. Em meio aos Ais por conta do transito, da noite, dela, dele, do tempo, lembro do menino de 17 anos da palestra mais de tarde, não estudou, nem viveu muitos anos, mas sabe mais do mundo que qualquer um ao meu redor. O jeito é desviar, quebrar o efeito dominó,destruir nossa síndrome de Ais, não responder, sem absorver, quem sabe retribuir um “relaxa”. E assim, à todos os ais do nosso dia a dia, um “ai que bom.”

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Fadiga de amor barato

Olhou para cima, contemplou a escuridão do céu, para baixo, as luzes da cidade. Ouviu o barulho do trinco da porta. Como desejou estar errada, por ela, permaneceria em companhia de sua doce solidão. Fechou os olhos para não render-se à rotina. Não queria mover-se para traz e encontrar a fadiga de seu relacionamento.

- Boa noite querida.

“Como ele pode ainda me amar tanto...”.

- Boa noite, Jorge. Disse ela levantando-se da cadeira da varanda e observando o marido cansado depois de um dia de labuta.

“Esperando-me para jantar juntos, ela gosta tanto de mim...”

- Fiquei preso no trabalho até mais tarde, reunião com o diretor de logística.

“Será que ela percebeu o perfume diferente? A camisa amassada?”

Letícia serviu o jantar e lembrou-se das promessas feitas sete anos antes. Comeriam sempre juntos, dormiriam sempre virados um para outro, seriam sempre leais, teriam três lindos filhos... Como pareciam tolos, os votos, um dia, regados pelo amor.

“Amor?” Olhou os olhos baixos à sua frente sob as lentes de vidro de uns óculos fora de moda. A camisa de botões azul piscina amassada. “Quem usa uma roupa dessas para trabalhar só não pode ter vaidade nenhuma, ele nem passou antes de ir, porque tem que depender de mim para tudo?” A moça jovem de cabelos louros e pele branca neve não lembrava a última vez que enrubesceu de paixão. Sentia falta da adrenalina, do coração cheio ao beijá-lo. Sua vida não tinha alcançado às perspectivas que sonhara, prometera morrer de paixão, morria, agora, de tédio.

- Como foi seu dia? Aaah, quase ia me esquecendo...

“Dou ou não o presente que comprei? Será que ela vai notar algo estranho? Presentes são sempre assim: vêem depois de alguma besteira”

Letícia, afundada em seus pensamentos, nem notava que o marido falava com ela. Só voltou à realidade do apartamento 602 quando ele voltou com um pequeno embrulho vermelho.

- O que é isso, Jorge?

- Fui almoçar no shopping, passei em frente aquela loja que você gosta e quis te fazer um agrado.

“Comprar o presente da sua mãe no último Natal lá, não quer dizer que eu adore a Loja. Vamos Letícia, tente. Ele te ama, onde vai encontrar um homem assim? Que trabalha até as 22horas, traz presentes e te ama incondicionalmente”

Ela fingiu um lindo sorriso, ele fingiu a calma.

“Ela gostou! Mulheres e caprichos sempre se dão bem, por hoje, me safei. Como o sorriso dela é bonito. Ela está feliz. Está bonita hoje. Letícia sempre foi esperta, com certeza notou algo estranho, não posso mais vacilar”

Muitos homens haviam passado pela sua vida tais como brisa leve, sem serem notados. O coração de Letícia permanecia catatônico ao seu marido por muito tempo. Mas do nada, as incertezas visitaram-na à noite, brotando sonhos e fantasias com as oportunidades que perdera.

Porque sinto ódio dele? Ele me dá tudo que preciso.”

- Vou dormir, estou exausta.

“Preciso dar mais atenção a ela, ou vou acabar com meu casamento”

- Vou terminar de lavar a louça.

Jorge terminou seu trabalho na cozinha, foi ao quarto, trocou de roupa e deitou-se na cama. Observou Letícia de olhos fechados, virada de frente, com as duas palmas da mão se chocando na incumbência de acolher a parte esquerda da face.

“Parece um anjo. Amanhã vou dizer a Laura que não a quero mais como amante. Passo pela floricultura e compro orquídeas. Letícia ama orquídeas! Vou salvar meu casamento”

Ele deu um beijo na testa da mulher, que abriu os olhos e acompanhou o marido se aconchegar de bruços, seus olhos pareciam pesados de um dia na ativa, exibia um leve sorriso tranqüilo, como quem nem tão acordado, nem tão distante. Eles haviam se amado muito um dia, e durante todo esse tempo, eram simbiose de amor e fidelidade. Hoje, julgavam adivinhar os pensamentos um do outro, mas não sabiam, eram, de fato, meros desconhecidos.

“Amanhã peço divórcio”.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O medo nos corrompe

Garanhus recebe, todos os anos, 10 dias intensos de quebra de monotonia. No último mês, eu os recebi. Foram esses o bastante para causar um choque de realidade na volta para casa. Foi, então, que percebi: O mundo se divide entre os habitantes de cidades grandes e de cidades pequenas. Um homem que uma vez faz parte do caos da efervescência da globalização, do asfalto cosmopolizado e da urgência dos grandes centros, para sempre terá uma metade hostilizada dentro de si. É muito possível que o ser humano possua em sua natureza, bondade e cumplicidade, mas o medo corrompe a nossa natural cordialidade.

No primeiro dia do Festival de Inverno, chegamos à ladeira cheia de casas simples e calmas, a nossa era a fonte barulhenta e abrigo de uma média de 30 pessoas sobreviventes a temporada. Como toda boa tradição de casa lotada, a água não vinha. Como toda boa sem-vergonhice jovial, a idéia de pedir um tempinho no chuveiro alheio veio pertinente. Encontramos, às 20h da noite, Dona Prazeres e sua filha simpática que nos cederam sua casa. E assim, das nossas necessidades, vários personagens desenharam histórias mais completas e peculiares ao longo da viagem. Nossa amizade com Gel, diminutivo de Maria de Jesus, uma garanhuense de 50 anos, foi a mais linda de todas. Primeiro dois de nós haviam entrado em seu lar para usar o banheiro e saíram de barriga cheia por conta de um almoço memorável, depois conhecemos sua fonte de renda: um bar humilde do qual viramos freqüentes assíduos. Como o banheiro do local era um canto da parede escondido por uma pequena cortina, ao lado da área onde sentávamos para tomar cerveja, Gel sempre oferecia sua casa às meninas, onde também ouvimos as histórias das suas filhas e da cidade. Os agrados dos moradores não acabavam: um outro homem que ao ver os visitantes no bar da amiga trouxe de sua casa um atraente sarapatel, além dos petiscos de graça, de mais banhos e conversas jogadas fora. O que me assustava todos os dias era a falta de hesitação que aquele povo tinha em nos ajudar. As relações que mantínhamos com a vizinhança seguiam um padrão: uma saudação cordial, um sorriso, um gesto com as mãos de “Pode entrar!”, uma conversa afiada e, por fim, um “volte sempre”. Ao comprar queijo numa vendinha próxima, um senhor me perguntou se eu estava naquela casa do samba corrente. Ao fazer que sim, ouvi os mais gentis elogios às pessoas que “faz amigo fácil” segundo ele. Nunca imaginaria que a casa onde às 5horas da matina a música ainda era alta, seria tão bem recebida por um senhorio tranqüilo. “Engraçado” Respondi. “O que mais se comenta lá em casa é o quanto o povo daqui é gentil e simpático, não fazia idéia o quanto isso me impressionaria”. Meu comentário sucedeu um sorriso homérico e a ingressada de outro cliente na conversa. Terminei minha compra com o coração completo de ouvir o quanto eles gostam dos recifenses, dos jovens, da simpatia e o quanto seremos, para sempre, bem vindos. Mal sabem eles, tudo que recebem é conseqüência da cordialidade sem fim que transmitem.

Voltando à cidade, parada no engarrafamento no fim da tarde, dois homens que andavam na rua começam a falar comigo. Surge, então, um diferente padrão de relacionamentos: Desconfiança, medo, alívio, vergonha. Os dois sujeitos procuravam me alarmar para um problema no meu carro. Claro que, presa às minhas inseguranças, havia arquitetado como escaparia do assalto. Sigo, rodeada pelas luzes urbanas, o corpo calmo, “não foi dessa vez”. Penso em Gel, sentada no banco de seu bar, nos bêbados do bairro cantarolando um samba forte, na garrafa de vinho comprada fora que levávamos para pôr em sua geladeira, na liberdade dos clientes, no rosto triste de Gel ao se despedir, no abraço asfixiador que um boêmio da região nos deu na última noite. Ouço o som da buzina, o farol está verde. Ai que saudade de Garanhuns.

Gel, sambinha e Zé Maria, o bêbado de sempre, em pé.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Vento amigo

Do meu quarto, agora, ouço os sons do casamento que vem da sala:

Música de final de filme, cheiro de cigarro, interruptores, chinelos, geladeira, lençol.

- Bel, acorde minha filha, o filme já acabou. Diz meu pai. A idéia de oficializar uma união pelo casamento, a meu ver, carece de liberdade. Receio da rotina, da estabilidade emocional, da falta de um pouco de solidão. Mas, estranhamente, perco esse foco aos poucos quando pequenas situações (e ai a inutilidade de chamar de pequenas) comovem meu lado mais frígido.

Hoje meus pais se apaixonaram de novo, ninguém viu, apenas eu e o vento. Amor é vento leve, intruso, ambiente, incolor.

Era um dia comum, televisão ligada, jornal na mesa, ela e Fernando Pessoa no sofá, ele com seu cigarro, futebol e Tv. Eis que surge o prefácio: uma conversa trivial. Ele começa a falar sobre uma queda homérica em uma pelada quando era jovem.E tudo começou: - E foi, Braga? Com aquela voz escolhida por ela pras frases empolgadas. De repente, vieram os gestos, os risos, a ligação, o interesse, a exaltação. Eis que aparece a testemunha, eu. Chamou-me a atenção a forma como se olhavam. Não é fácil enxergar alguém que enche seu campo visual 24 horas por dia, mas ali havia uma sintonia tão visível que a retina não criava obstáculos. Eram dois mutantes capazes de, de fato, se olharem. Então tudo se coloriu. O amor veio ao meu encontro dizendo que é rotina, dia-a-dia, algo a que a paixão não sobrevive. Amor é sutil, imprevisível, terno. Paixão é avassaladora, traduzível, forte. O ar da sala se encheu de uma energia positiva extasiante. Aos olhares que se cruzavam do amor barato e cumplicidade, havia o meu, de admiração e estranhamento. Como assim, depois de 29 anos grudados, ainda há estórias a se contar? Risos a serem causados? Atenção a ser dada? Foi aí que percebi que o amor se recicla, se renova e emancipa nos momentos banais. Meus pais se reapaixonam várias vezes e nem notam. A idéia de convenção estagnada que tempera o casamento se desvaneceu. Existe, ainda, a grande sacada do matrimônio: o amor que brota da rotina. Aquele que se vai é porque não foi entre esses seres dotados do poder bizarro de se entreolharem.

- Bem vindos amigos da Rede Globo... Falava certa voz desmancha-prazeres do lado esquerdo do cômodo.

Eu voltei a minha refeição. Ele ao seu esporte, cigarro, seu estádio, celular, jornal, meninos, trabalho, preocupação, estudo, inglês, empresa, idéia, livro, tela, piada, notícia. Ela às suas poesias, irmãs, família, jantar, basquete, sofá, emprego, zelo, fofoca, risada, telefone, despesa, comida, cachorro...

- Pai, como é mesmo aquela história daquela queda?

24/06/20009

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Alvedrio

Guiada pelas mãos de tinta de um jardineiro
Quero gozar da minha liberdade
Para os olhares covardes,atentos, passageiros
Trarei o amargo da minha leviandade

Ao alheio os votos castos
sem criatividade
Para dentro de mim
várias vidas vividas
Que leves em sintonia
levam pesos de felicidade

02/06/2009

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Fiel imperfeição

Havia um olhar
Cheirava a árvore, vida, luar
Corpo só, corpo lento, corpo ao vento
Havia um sorriso
Vagava leve, distante, distraído
Os olhos e a boca
Encaixe, caixe, colorido
Cheirava a filme, sofá, amar
Cantavam sonhos
Fiéis imperfeições
Amantes do destino
Vibrantes intenções
O glamour do conforto
A alma brinca
Com sonhos em contramão
Com um cheiro morno
Um abraço torto
Um sorriso bobo
Suspeitava da convenção
Terno, louco, contorno
Será eterno em liberdade
Na memória
Na não realidade
Na distância dura
Na verdade crua, raridade
Será eterno enquanto
Não ser, não ter
Será a presença incolor
No desencaixe casto
No sujo pudor
Na esperança negra
Não existirá senso
Suas falas de divã
Não terá acalento
Não será vã

26/05/2009

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Coração imitão

Sabe a flor
Sabe o dia
A palavra que ia e voltou?
O olhar admirado segue seu rastro
É de você que eu me lembro
Para meu acalento
Eu não penso em vão
Pra onde ela ia?
Diria? Faria?
Aos poucos o espelho
De um sorriso, fez-se a cria
Dói no meu peito
Enche meu seio
De tanto amor
É de você que eu me lembro
pura inspiração
É por você que funciona
A minha réplica de coração
Mulher,
Sua fala, é tão bela
Que me deixa perplexa
A todo vapor
Leve, livre, dentro
Levo comigo, o meu maior amor.

13/05/2009

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Você é o que você escuta

A meu ver, instrumentos tocam, mas, ontem, os vi dançarem.

Fazia tempo que todos os pêlos do meu corpo não se arrepiavam com tanta emoção quando vi as Crianças do Coque tocarem My Way de Frank Sinatra, no CINE PE. Nessas horas, me sinto tão boba: palavras não têm tanto poder quanto imagino ao ler um texto que aprecio. Mas a melodia sim, parece traduzir todas as intenções não verbalizadas, as crianças de ontem cantaram suas histórias, suas forças de vontade, suas alegrias e todos os seus talentos em uma música, sem dizer nenhuma palavra. E me parece que todo mundo entendeu o recado ao parar atento ao palco lançando olhares de orgulho e ao aplaudi-las de pé com tanta aprovação. Eu tinha ido pelo cinema, mas valeu mais por esse momento.

Músicas têm poderes desumanos. No filme Ensaio para a cegueira, em minha opinião, houve duas cenas que conseguiram repassar melhor que o livro a emoção da narrativa. Uma delas, bem simples, de alguns segundos, mas para mim, alguns dos segundos mais lindos que já vi no cinema: Todos os recém e primeiros cegos que ainda não se conheciam sentam no chão do ambiente estranho, enclausurados do mundo real, sem idéias do que está por vir, mas presos aos piores temores de suas vidas. Então, o velho de óculos escuros revela um rádiozinho modesto e põe uma música. Nessa hora, todos os estranhos, inconscientemente, são levados pela harmonia da transmissão meia-boca, sem se darem conta, deixam suas cabeças encostarem-se aos ombros alheios, seus pés seguem um ritmo em sintonia, os olhares se acalmam e os semblantes recebem, pela primeira vez, um toque relaxado. Talvez um dos únicos momentos de plena serenidade do filme, já em meio à tragédia, mas mesmo assim, segundos de paz. Que paz! Que poder tem uma melodia sobre os ouvidos humanos! Só a música, porque discurso de apaziguamento nenhum teria esse feitio, foi capaz de oferecer tranquilidade. Agora me ponho a pensar o quanto a vida das pessoas seriam diferentes se elas mudassem suas trilhas sonoras! Acredite na influencia do que você escuta. Pelo menos para mim, tenho os cd’s certos para me animarem e os certos para me fazerem chorar, e volta e meia eles me guiam à alguém que não deveria, ao baixo-astral quando me pegam de surpresa, às súbitas alegrias sem origem definida e, mais importante, às minhas melhores motivações.

Agora decido que todas as palavras ditas e guardadas na minha vida se vão, fico com o som das minhas trilhas sonoras.

Músicas têm cheiros. Palavras seriam, então, para os que não conseguem se expressar pelo olhar, pelo gesto, pela melodia? Seria, para mim, apesar de amá-las, tão mais fácil não ter que usá-las, se todas as minhas intenções fossem delas, independentes. O mundo inteiro não estaria mais em paz, se em vez de discussões intermináveis, uma música resolvesse o problema? Ao ouvir o cd de Zeca Baleiro posso sentir o aroma do meu uniforme escolar Apoio e dos bolos da minha casa devorados nas tardes em amigas, assim como legião urbana me traz certo perfume masculino à tona, Bob Dylan transpira os cigarros fumados no quarto do meu irmão mais velho, Pink Floyd o do meio, inalo minha mãe ao ouvir Chico Buarque e meu pai quando escuto “Essa rua”. Músicas existem para aguçar os sentidos e são os eternos fiéis diários e álbuns de fotos de nossas vidas.

terça-feira, 24 de março de 2009

Redescoberta

Naquele mesmo momento, inúmeras conversas se denserolavam, saberiam as pessoas as intenções daqueles a quem falavam? Ou os julgavam pelas pinturas superficiais sobre suas verdadeiras faces? Como são perfeitas as máscaras humanas: narizes, bocas, pele, sinal, voz, cabelo.

Ele a olhava bem fundos nos olhos:

- Você acredita mesmo nisso?

Para ele os seus argumentos eram frutos podres de alguma passagem ruim. Jurou que a encontraria além da retina, que o que se passava por fora seriam reflexos superficiais. O riso nas respostas dela surgiu para dar a pitada de descaso que faltava na suposta farsa de seus ideais:

- Eu faria um aborto.

Ela analisou seus repúdios e procurou adivinhar quando teria ele solidificado seus pensamentos, fazia pouco tempo e seria apenas uma fase, ou aquela conversa era a redundância de tantas outras? Teriam seus argumentos sido penetrados nas raízes fincadas de outras cabeças? Ao esbarrar nas falas e textos alheios atinou para o, talvez, grande problema da humanidade: O horizonte entre as intimidades. Vão e voltam os segredos, atira e recebe os olhares, são tantas e tantos, mas o que são? Provavelmente todas as marionetes que circulam, falam, dormem e, geralmente, acordam, devem desejar a mesma coisa, almejar à mesma utopia e serem presos aos mesmos devaneios. O problema está na má comunicação das, que por falta de um nome mais cético, devem se chamar almas. Dispomos-nos a confrontar, a julgar, e infinitos infinitivos temperados com dissabores que azedam a convivência e a estadia da humanidade. É do encontro dos extremos dos pensamentos que nascem as guerras e as raivas. Mas por quê? Dos desencontros podem surgir redescobertas. Todos os dias, nem notamos que, bêbados de sono, ousamos vestir fantasias integrais. Perdemos a capacidade do conhecimento real do outrem. Os caminhos são sempre diferentes, daí as idéias loucas que aparecem como antíteses das outras que, por suas vezes, são tampouco sãs. Mas no fundo, somos reféns da mesma obscura complexidade. E tontos, nem percebemos.

Meros tropeços podem se transformar em grandes encontros. Aquelas conversas simples com rostos já conhecidos escondem mundos vastos e carentes de exploração. E esses são estranhamente parecidos com o mundo que guardamos para nós mesmos, nas nossas mentes bizarras, que muitas vezes julgamos sós. Se olharmos bem, por trás dos acasos comuns existem verdades bem mais interessantes que a nossa rotina cega e repetitiva.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Janelas Solitárias

O sol nasce para todos, mas nem todos nascem para o sol. A essência da desigualdade está no modo distinto de seus relacionamentos com A grande estrela. Bate 30 graus, pedra sob pedra bate o pedreiro; afunda seu corpo no mar o amante, debruça-se entre o emaranhado congelado pelo ar condicionado o distante, só faz reclamar do calor quem anda de elevador, ta nem aí o circulante.

Nas férias o Sol vira pop star, todos viram os corpos pra ele e torram seus dinheiros para ficarem a sua mercê. Será a influência midiática impondo-nos a gastar no verão? Falo, porém, do Sol cotidiano. Aquele que a minha janela ostenta, mas sofre de um mal: indiferença. Não seria esse Sol o mesmo do mês passado? Será, realmente, a falta de tempo das vidas que voltaram a sua rotina? Ou na verdade, é a falta de vida que há na rotina? Os domingos de janeiro são cheios de alegria, os de fevereiro ranzinzam. Fomos acostumados a valorizar o que a televisão quer, mas e o verão constante dos nossos quintais cotidianos? Passam tais como as nuvens passageiras.

Escrevo-me, ao final de maio de 2008, em Montreal: “Fez sol, fizeram-se risos. Hoje, pela primeira vez, a senhora com quem espero o ônibus, todos os dias, a quem julgava ser a bruxa do bairro (pelas suas faces frígidas matinais diárias), doou-me um belo sorriso, um bom dia e ainda de quebra afirmou, meio me perguntando, o quanto bonita era aquela manhã!”. A partir dali, os parques ganharam vida, as ruas movimentos, os rostos colorimentos, os pedestres comprimentos, meus pés havaianas, a cidade festivais, e eu ganhei uma nova Montreal. A cidade se escondia debaixo da neve! Recebeu um quê enlouquecido nos quatro cantos, agora levantados pelos raios solares.

- Como sabem aproveitar o Sol, dizia eu. Não eram ainda férias, mas todos os dias ensolarados eram paisagens sorridentes, o silêncio chegava tarde, pois escurecia apenas aos arredores das 8 horas.

De volta ao Brasil, no país do calor, eu me encontrava com saudades do Sol canadense. No outro dia, apesar de ser agosto: céu azul, nuvens escolhidas a dedo, mas uma surpresa: parques vazios, praias e piscinas solitárias. Transporto-me para o Norte, aquela certeza de felicidade por uma janela sem cortinas.

Enfim, quando aprendemos a desvalorizar a dádiva que temos abundante? Em vez de ressaltar as seqüelas de uma sociedade errante, deveríamos, por hora, fazer companhia as janelas empoeiradas nas manhãs corridas de uma quarta-feira.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Luzes de consciência

Quando as luzes da consciência disfarçadas de raios solares acharam a fresta esquecida pela cortina, aquelas rugas matinais apareceram e os olhos se abriram. Como a ebriedade combina com a manhã! Há algo de misterioso na relatividade: não é o ambiente, as pessoas, o estado de espírito. Tudo depende da hora do dia. De noite não existe ressaca, a dor de cabeça é da vida e matinal. O cérebro de certo inchava e voltava ao normal na colaboração de uma conspiração social que a fazia não querer sair da cama, mas era preciso porque a luz começava a incomodar não apenas o seu bom-senso, mas também o calor que bate às 6 horas de um céu ensolarado. Levantou e se deparou com a única pessoa que não gostaria de ver.

- O que está fazendo aqui?

Não tinha respostas. Estava sempre rodeada de pessoas menos desagradáveis, e logo naquele dia se encontrava só e olhando para a única das quais não se sentia a vontade. Aqueles silêncios constrangedores e sinais de incomodo sempre apareciam quando elas se deparavam sem um terceiro para quebrar o clima ruim.

- Quantas vezes precisarei dizer o quanto lhe odeio?

Não se orgulhava da noite passada, das anteriores, e de uma vida toda. No entanto, quando chegava a noite, ao lado de outrem, estava bem. O seu problema era quando a inconveniente visita lhe aparecia de manhã. Engraçado que quando chega essa hora do dia, o mundo parece mais brando, porém as pessoas de ontem, em seus íntimos, continuam cruas e cruéis tal como a noite. Não se enganava pela leveza solar, julgava aquela a quem olhava como se soassem as 24 badaladas no relógio da sala.

- Por favor, desapareça!

Costumava fingir que ela própria não era ela, escolhia alguém a quem admirava e fingia ter a vida dessas para se confortar. Vivia de sonhos e imaginação para esquecer a injuria da mistura de vergonha e decepção que tinha consigo. Há muito deixara de ter pena de si mesma, passou a ter ódio. A raiva de não ser bem sucedida na vida, em todos os extremos. Era uma espécie de conforto não ser ela, mesmo que por poucos minutos, em seu mundo fantástico que tinha as beiras da cabeça, tinha dignidade e bem estar.

- Por favor, me deixe!

Perdera os vestígios de auto-estima nas humilhações que havia sofrido na adolescência. Hoje para os olhares desatentos do mundo passava indiferente, mas por dentro ainda era aquela frágil menina com o coração inundado de lagrimas. Julgavam-na fria e forte. Mas era a sutileza quebrada pelos ventos fortes da vida e a fraqueza erguida pelas mãos vis que lhe estenderam apenas pedras quando precisava de suporte. Toda noite encontrava consolo nas garrafas de vinho baratas e colecionava desgraças.

- Será que algum dia acordarei sem querer te matar?

Toda manhã era um processo doloroso o encontro com o espelho.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Serás por eles, por ti morrerás.

1944. A primavera acabara de chegar e naquele dia o sol raiava com a dor de luto de mais alguns judeus, deficientes e outros que haviam sido mortos enquanto a lua sangrava na noite anterior. Ele acordou, já havia tomado seu café e repassava as perguntas na cabeça. Fitava o espelho treinando as faces ameaçadoras, sua mão tremia e a caneta prata, guardada para dias especiais, perdia a tinta barata pelo suor excessivo de sua mão. Tornara-se jornalista há 3 anos, e conseguira um emprego num dos mais conceituados jornais há 12 meses. O trabalho, assim como a missão daquele dia, era mais um presente do diretor ao pai do rapaz. Para o jovem de óculos grandes, testa enrugada pela miopia e alguns cabelos brancos pelo estresse perfeccionista, que nada condizia com a lógica jornalística da época, a mídia era uma grande arma da força nazista. Era ariano e privilegiado, mas detestava todo o sistema violento e conturbado alemão. Havia sonhado com essa oportunidade e pretendia revelar todos os podres daquele a quem mais nutria ódio. Seria renomado, aplaudido e jamais esquecido por conta daquele dia que havia acabado de começar. Ouvira falar da habilidade de discussão e persuasão do entrevistado, mas não se deixaria levar, mesmo que todos os outros se vão nas ondas, ele iria contra a maré. A ditadura de seus pensamentos e idéias seria mais forte que a repressão de qualquer realidade.

Chegara ao escritório do Terceiro Reich da Alemanha. Um quadro mal pintado e inacabado, uma estante de livros, um ar escuro e ébrio inundava a saleta. Habituara-se a observar as testas, pelo desconforto da aparência de sua própria. A testa daquele homem, a quem passara a noite ensaiando palavras de afronta, tinha rugas de dores passadas, abaixo delas, quase que escondidos, os olhos transpiravam um sentimento mesclado. Conseguiu respirar raiva, muita raiva. Havia outro cheiro sem classificação, um quê hipnotizante, era impossível desprender daquele olhar enigmático, que o fazia balançar a caneta carente de anotações. Quando ousou revelar o começo de seu texto ensaiado, foi interrompido pela voz suave de Hitler, que falava de como saudosa era a cadeira que estava do lado da que se postava sentado. Era nela que costumava sentar seu querido antigo companheiro de trabalho, que jazia num importante cemitério germânico. O jovem rapaz pensava em como o velho poderoso julgava seu trono importante a ponto de cometer tantas atrocidades e ousou iniciar uma fala, mas não conseguiu terminar.

- Queira ter o prazer de sentar-se nessa tão prezada cadeira, disse Hitler.

E lhe estendeu a mão como num convite irrecusável para seu mundo, que num segundo tornou-se tão acolhedor. Quando se deu conta, o entrevistado havia mudado seu discurso para a importância do jornalismo e da sensação de privilegio que tinha de ter um representante de um grande jornal em seu gabinete.

O segundo aroma desconhecido de seu olhar revelou-se: carisma. Era como se para aquele homem, o corpo decadente e repulsivo tivesse sido escolha do destino, mas sua voz, seu olhar, o balançar de sua cabeça, e o dançar de suas mãos fossem bordados nas mãos de uma fina e linda mulher. O jornalista balbuciou o questionamento de alguns feitos do presidente, havia mudado o curso do interrogatório, sem saber muito o porquê. O algoz entrevistado falava da recente descoberta do colete salva-vidas, resultado da competência de seus homens e da utilidade de seus conhecimentos. O relato da entrevista ganhava corpo: omitira-se a parte de que as várias descobertas levavam bagagem de sangue e mortes de cobaias involuntárias. O jornalista ganhava alma: omitiram-se seus ideais, era ciente de todas as calamidades, mas as vestia de nacionalismo e amor pelo país. Aquele homem que de muitos choros se alimentara, sorria cordial, e ganhava aplausos em forma de letras. "Ora, se a Alemanha ariana o apoiava, muita certeza o povo deve ter." A tarde chegou ao fim e o principiante jornalista se viu no começo, entrara para o mundo real. Aquela tarde nunca, de fato, seria esquecida. Mesmo que para a Alemanha fosse apenas mais uma reportagem confortadora, para ele, o marco inicial de sua vida. Era, enfim, jornalista. Não poderiam estar mais orgulhosos o Reich e todos os outros governantes de uma nação.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

FELIZ COCA COLA!

As mensagens sobre a efemeridade da vida, perdão ao próximo e o recomeço inovador entopem as caixas de entrada dos celulares e emails; o otimismo exagerado inunda o mundo cibernético e o Orkut assemelhasse a reuniões de alcoólicos anônimos com todos os conselhos de como a vida pode mudar; as doações começam para acabar com a culpa de inércia social e as pessoas terminam com a sensação de que os 365 dias valeram a pena porque, em um deles, finalmente, os brinquedos empoeirados desocuparam a estante; os perus vão ao forno porque os fiéis deixaram de comer carne na páscoa pela mesma pessoa que hoje louvam o nascimento: então é natal!

Os rios de hipocrisia que inundam o mundo no mês de dezembro são apenas um eufemismo usado para disfarçar a força do sistema econômico nas vidas humanas. Se todos os repetitivos dizeres natalinos fossem, de fato, levados a sério, os shoppings não abririam 24 horas nas vésperas do Natal. Como o homem se habituou a se enganar com seus disfarces, enquanto alguém escreve um lindo e decorado cartão de natal, na verdade se guia pelos preceitos do mercado e da televisão. As crianças aprendem a amar o natal com a sessão infinita dos filminhos sobre Jesus e as lavagens cerebrais na escola para não ficar feio adorar o papai Noel apenas por ele trazer seus presentinhos. O natal existe para salvar o mundo de uma crise econômica e o décimo terceiro chega para lotar os shoppings e avermelhar as contas bancárias. O dever de celebrar o nascimento de cristo passa como um axioma e as principais personagens das vidas humanas ficam sem homenagens (apenas com muito dinheiro), no caso do Brasil: em vez do menininho Jesus no presépio deveria existir uma coca cola e as preces deveriam ser dirigidas a Roberto Marinho, verdadeiro Deus da bíblia brasileira, a Globo.

No dia 24 de dezembro todos sentirão calor, mas enfeitarão sua árvore de natal com floquinhos de neve, estarão cansados por terem passado as noites em claro embrulhando presentes e todos os derivados da palavra comprar serão seus melhores amigos. O suor excessivo endurecerá o humor de inúmeros supostos velhinhos com barbas postiças que por algum motivo torto estarão usando botas de inverno, calças compridas, mangas longas e gorros em pleno verão brasileiro. Todos se abraçarão, presentes serão mandados em vez de pedidos de desculpas ou declarações de amor, muitos reclamarão por meio de textos de ódio à data natalina, mas todos acordarão na manhã do nascimento de cristo com um sentimento único, uma paz interior, uma felicidade inigualável, um sorriso escondido, os olhos brilhantes que vêm da certeza de que hoje, finalmente, ganharão um presente de natal!

domingo, 21 de dezembro de 2008

Legalizar ou não o progresso?

O Brasil segue uma tradição em que se espera analisar as conseqüências das medidas tomadas por outros países para então adotá-las. Poder-se-ia, pois, estudar a fio quando os Estados Unidos conseguiram, ao menos nessa questão, usar sua racionalidade em prol dos direitos humanos. Na década de 90, a potência estadunidense temia a intensa criminalidade anormal e inédita até então, os estudiosos mostravam-se desesperados e preconizavam o terror para os 5 anos seguintes. Para a surpresa geral, aconteceu o oposto: Queda de mais de 50% dos índices de violência meia década depois. As explicações foram várias: leis de controle de armas, estratégias políticas, maior policiamento. No entanto, o economista Steven D. Levitt,em seu livro freakonomics, descredibiliza todas as tentativas vãs de explicar o fenômeno,e responsabiliza o fato a Norma Mccorvery. Em 1973, ela lutou e foi vitoriosa na luta pela legalização do aborto. Ou seja, 20 anos depois dos anos 70, milhares de crianças indesejadas, que teriam vidas mais propensas ao crime, simplesmente não nasceram.

Segundo dados do Ministério da Saúde, no Brasil são 1,4 milhões de abortos clandestinos por ano; 250 mil mulheres são internadas no SUS por complicações ao abortarem; e 13 a 15% das mortes maternas são conseqüências delas; no Nordeste são 85.019 casos anuais de curetagens pós-aborto. Desconsiderar esses números é ignorar um pedido tão humano da população. Não há como supor a inexistência dessa problemática cheia de riscos. A penalização como delito da realização do aborto só põe em riscos maiores mulheres pobres e negras que não têm condições de fazê-lo em clínicas particulares mais seguras.

Legalizar o aborto não é considerar determinada parcela da população simplesmente inconveniente ao país, mas dar direito a outra parcela da sociedade, as mães vítimas do descaso governamental, o direito de não piorar, ainda mais, a condição de suas vidas. Uma educação eficiente seria a solução paras os problemas brasileiros. Medidas imediatistas como Bolsa Família e Bola Escola oferecem a melhoria agora, mas e quanto ao longo prazo? O desinteresse dos presidentes com a gestão de seus futuros suplentes prende o Brasil em um eterno ciclo conjuntural. A estrutura carente de mudanças permanece abandonada. Encarar a legalização do aborto como uma possível solução para a criminalidade exacerbada do país oferece uma esperança que vai de encontro a um governo reacionário. O Brasil mostra-se despreparado para mudanças fortes tal como é habituado a conviver com paliativos. Tratando-se do caso brasileiro, do hábito surgiu a tradição.

domingo, 30 de novembro de 2008

Minhas garotas

Ter verdadeiros amigos quer dizer, também, ter espelhos convictos. Quem um dia conquistou a sorte de tê-los será sempre prisioneiro de si mesmo. Há as pessoas a quem poderás enganar com um sorriso falso, um gesto mascarado. Mas, aos seus amigos, caberá a lídima responsabilidade de desvendar-te. Será o julgamento de quem um dia insurgiu nas profundezas da tua alma que ousará desafiar os gestos externados, sendo esses luz de fora, não a sombra de dentro.

Quando um dia, às margens de uma roda de conversa, ouvires sobre ti, como um espelho revela os mais inconvenientes defeitos da face, e não puderes negar, porque os que te falam te vêem mais que você próprio, estarás condenado à eterna confiança nas palavras que te cercam. E algo no fundo, salvo aos clichês das esferas públicas, te oferecerá uma pequena esperança de conforto: terás sempre alguém a olhar-te. E esse fato será sempre conseqüência de outro: terás sempre amor.

Quando não te falo dos meus mais fieis conceitos, não é pela ausência deles, é porque eles moram em mim e se julgam escancarados, se não te dou um abraço é por já ter te abraçado muito antes, se passo indiferente às tuas declarações é porque já cansei de repeti-las na minha cabeça. Pensei que tivesses sentido todo meu carinho e amor muito antes de ousares notar que não houvesse recebido. Meus amores vivem bem e seguros dentro de mim, e se acham desprovidos de responsabilidade social.

Se os professores delas ouvissem as conversas descompromissadas sobre energia e as voltas que mundo dá não seriam injustos como às vezes são, nenhum homem as trataria mal se vissem como interessantes são elas quando são quem realmente são num ambiente tranqüilo, nenhum conhecido de primeira viagem ousaria atropelar suas frases numa conversa comum se soubessem que nos longos diálogos surgem as mais estrambólicas idéias e os mais atrevidos instintos, todos os mendigos estenderiam-lhes a mão se soubessem da compaixão irremediável que possuem, assim como muitos não desafiariam atrapalhar seus caminhos, por terem noção do perigo que as envolve quando as testas franjem. E você as olharia calado com uma enorme admiração, que lhes baixaria os olhos e faria vir à mente: Que sorte eu tenho! Num dia comum, mesmo ao as ouvir falarem sobre seus defeitos, se fossem essas as suas amigas. Eu amo vocês!

Papa e Diabo compram na mesma loja

O Papa João Paulo II, enquanto esteve sob os tetos do vaticano, adicionou mais um mandamento à rasteira modernização da igreja Católica: Serás Pop. O seu antigo subalterno e atual pontífice não ficou para trás com a introdução de um nova ordem celestial: Serás Fashion. Papa Bento XVI, que até então tinha como seu mais temido inimigo o Diabo, porém ficou claro que esse é seu principal companheiro nas tardes de shopping, mostrou temer algo mais aterrorizante: Batina coronha. A geração de alfaiates à serviço do vaticano desde 1792 foi afastada do cargo, em abril de 2004, por um desleixo que acabou deixando as vestimentas papais um tanto mais curtas que o normal. O luxo ostentado pelo Papa abrange os quatros cantos de seu recinto, e o poder transcende na mesa ao guarda-roupa. O vaticano em geral apresenta disparidades a começar pela principal fonte de seu sustento: Donativos de fiéis mundo afora.

O patrimônio do Vaticano está avaliado em mais de 700 milhões de euros, além do lucro com a Capela Sistina e semelhantes, levando a US$ 5 bilhões a sua riqueza total. O Óbolo de São Pedro é responsável por coletar as doações de 5.627 dioceses espalhadas de várias nacionalidades. Estima-se que o dinheiro arrecadado seja de 50 milhões de euro anuais dos seguidores da fé. A quantidade absurda de pessoas que contribuem para esse ciclo vicioso em poder a mais de 2000 anos de acumulação de riquezas traduz a intensa alienação humana, que permanece inquestionável. Um trabalhador se sobressair no sistema capitalista através de seu esforço é muito diferente de um status sustentado pela ilusão de vários. A redenção do mundo à imposição da igreja católica parece inquebrável e insolúvel.

Em nome do sacrifício a Jesus Cristo e do respeito ao sagrado, o Papa Bento XVI ostenta o luxo da sua devoção. Ao aparecer no ranking da revista Esquire como um dos homens mais bem vestidos do mundo, mostrou as conseqüências do seu árduo trabalho entre os prédios chiquérrimos do Vaticano. “Não têm nada a ver com vaidade, mas sim com tradição” disse o próprio. O guarda roupa de Bento XVI abriga desde Óculos Gucci a sapatos vermelhos Prada, qualquer semelhança com o cara lá de baixo não é mera coincidência.