quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Fadiga de amor barato

Olhou para cima, contemplou a escuridão do céu, para baixo, as luzes da cidade. Ouviu o barulho do trinco da porta. Como desejou estar errada, por ela, permaneceria em companhia de sua doce solidão. Fechou os olhos para não render-se à rotina. Não queria mover-se para traz e encontrar a fadiga de seu relacionamento.

- Boa noite querida.

“Como ele pode ainda me amar tanto...”.

- Boa noite, Jorge. Disse ela levantando-se da cadeira da varanda e observando o marido cansado depois de um dia de labuta.

“Esperando-me para jantar juntos, ela gosta tanto de mim...”

- Fiquei preso no trabalho até mais tarde, reunião com o diretor de logística.

“Será que ela percebeu o perfume diferente? A camisa amassada?”

Letícia serviu o jantar e lembrou-se das promessas feitas sete anos antes. Comeriam sempre juntos, dormiriam sempre virados um para outro, seriam sempre leais, teriam três lindos filhos... Como pareciam tolos, os votos, um dia, regados pelo amor.

“Amor?” Olhou os olhos baixos à sua frente sob as lentes de vidro de uns óculos fora de moda. A camisa de botões azul piscina amassada. “Quem usa uma roupa dessas para trabalhar só não pode ter vaidade nenhuma, ele nem passou antes de ir, porque tem que depender de mim para tudo?” A moça jovem de cabelos louros e pele branca neve não lembrava a última vez que enrubesceu de paixão. Sentia falta da adrenalina, do coração cheio ao beijá-lo. Sua vida não tinha alcançado às perspectivas que sonhara, prometera morrer de paixão, morria, agora, de tédio.

- Como foi seu dia? Aaah, quase ia me esquecendo...

“Dou ou não o presente que comprei? Será que ela vai notar algo estranho? Presentes são sempre assim: vêem depois de alguma besteira”

Letícia, afundada em seus pensamentos, nem notava que o marido falava com ela. Só voltou à realidade do apartamento 602 quando ele voltou com um pequeno embrulho vermelho.

- O que é isso, Jorge?

- Fui almoçar no shopping, passei em frente aquela loja que você gosta e quis te fazer um agrado.

“Comprar o presente da sua mãe no último Natal lá, não quer dizer que eu adore a Loja. Vamos Letícia, tente. Ele te ama, onde vai encontrar um homem assim? Que trabalha até as 22horas, traz presentes e te ama incondicionalmente”

Ela fingiu um lindo sorriso, ele fingiu a calma.

“Ela gostou! Mulheres e caprichos sempre se dão bem, por hoje, me safei. Como o sorriso dela é bonito. Ela está feliz. Está bonita hoje. Letícia sempre foi esperta, com certeza notou algo estranho, não posso mais vacilar”

Muitos homens haviam passado pela sua vida tais como brisa leve, sem serem notados. O coração de Letícia permanecia catatônico ao seu marido por muito tempo. Mas do nada, as incertezas visitaram-na à noite, brotando sonhos e fantasias com as oportunidades que perdera.

Porque sinto ódio dele? Ele me dá tudo que preciso.”

- Vou dormir, estou exausta.

“Preciso dar mais atenção a ela, ou vou acabar com meu casamento”

- Vou terminar de lavar a louça.

Jorge terminou seu trabalho na cozinha, foi ao quarto, trocou de roupa e deitou-se na cama. Observou Letícia de olhos fechados, virada de frente, com as duas palmas da mão se chocando na incumbência de acolher a parte esquerda da face.

“Parece um anjo. Amanhã vou dizer a Laura que não a quero mais como amante. Passo pela floricultura e compro orquídeas. Letícia ama orquídeas! Vou salvar meu casamento”

Ele deu um beijo na testa da mulher, que abriu os olhos e acompanhou o marido se aconchegar de bruços, seus olhos pareciam pesados de um dia na ativa, exibia um leve sorriso tranqüilo, como quem nem tão acordado, nem tão distante. Eles haviam se amado muito um dia, e durante todo esse tempo, eram simbiose de amor e fidelidade. Hoje, julgavam adivinhar os pensamentos um do outro, mas não sabiam, eram, de fato, meros desconhecidos.

“Amanhã peço divórcio”.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O medo nos corrompe

Garanhus recebe, todos os anos, 10 dias intensos de quebra de monotonia. No último mês, eu os recebi. Foram esses o bastante para causar um choque de realidade na volta para casa. Foi, então, que percebi: O mundo se divide entre os habitantes de cidades grandes e de cidades pequenas. Um homem que uma vez faz parte do caos da efervescência da globalização, do asfalto cosmopolizado e da urgência dos grandes centros, para sempre terá uma metade hostilizada dentro de si. É muito possível que o ser humano possua em sua natureza, bondade e cumplicidade, mas o medo corrompe a nossa natural cordialidade.

No primeiro dia do Festival de Inverno, chegamos à ladeira cheia de casas simples e calmas, a nossa era a fonte barulhenta e abrigo de uma média de 30 pessoas sobreviventes a temporada. Como toda boa tradição de casa lotada, a água não vinha. Como toda boa sem-vergonhice jovial, a idéia de pedir um tempinho no chuveiro alheio veio pertinente. Encontramos, às 20h da noite, Dona Prazeres e sua filha simpática que nos cederam sua casa. E assim, das nossas necessidades, vários personagens desenharam histórias mais completas e peculiares ao longo da viagem. Nossa amizade com Gel, diminutivo de Maria de Jesus, uma garanhuense de 50 anos, foi a mais linda de todas. Primeiro dois de nós haviam entrado em seu lar para usar o banheiro e saíram de barriga cheia por conta de um almoço memorável, depois conhecemos sua fonte de renda: um bar humilde do qual viramos freqüentes assíduos. Como o banheiro do local era um canto da parede escondido por uma pequena cortina, ao lado da área onde sentávamos para tomar cerveja, Gel sempre oferecia sua casa às meninas, onde também ouvimos as histórias das suas filhas e da cidade. Os agrados dos moradores não acabavam: um outro homem que ao ver os visitantes no bar da amiga trouxe de sua casa um atraente sarapatel, além dos petiscos de graça, de mais banhos e conversas jogadas fora. O que me assustava todos os dias era a falta de hesitação que aquele povo tinha em nos ajudar. As relações que mantínhamos com a vizinhança seguiam um padrão: uma saudação cordial, um sorriso, um gesto com as mãos de “Pode entrar!”, uma conversa afiada e, por fim, um “volte sempre”. Ao comprar queijo numa vendinha próxima, um senhor me perguntou se eu estava naquela casa do samba corrente. Ao fazer que sim, ouvi os mais gentis elogios às pessoas que “faz amigo fácil” segundo ele. Nunca imaginaria que a casa onde às 5horas da matina a música ainda era alta, seria tão bem recebida por um senhorio tranqüilo. “Engraçado” Respondi. “O que mais se comenta lá em casa é o quanto o povo daqui é gentil e simpático, não fazia idéia o quanto isso me impressionaria”. Meu comentário sucedeu um sorriso homérico e a ingressada de outro cliente na conversa. Terminei minha compra com o coração completo de ouvir o quanto eles gostam dos recifenses, dos jovens, da simpatia e o quanto seremos, para sempre, bem vindos. Mal sabem eles, tudo que recebem é conseqüência da cordialidade sem fim que transmitem.

Voltando à cidade, parada no engarrafamento no fim da tarde, dois homens que andavam na rua começam a falar comigo. Surge, então, um diferente padrão de relacionamentos: Desconfiança, medo, alívio, vergonha. Os dois sujeitos procuravam me alarmar para um problema no meu carro. Claro que, presa às minhas inseguranças, havia arquitetado como escaparia do assalto. Sigo, rodeada pelas luzes urbanas, o corpo calmo, “não foi dessa vez”. Penso em Gel, sentada no banco de seu bar, nos bêbados do bairro cantarolando um samba forte, na garrafa de vinho comprada fora que levávamos para pôr em sua geladeira, na liberdade dos clientes, no rosto triste de Gel ao se despedir, no abraço asfixiador que um boêmio da região nos deu na última noite. Ouço o som da buzina, o farol está verde. Ai que saudade de Garanhuns.

Gel, sambinha e Zé Maria, o bêbado de sempre, em pé.