quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Um pedaço de Verão

Os pés tocaram a rua cinza de casas coloridas. Seis crianças correram na direção da máquina que viera torná-las protagonistas. Nos seguiram sem mãe gritando, babá atenta ou pai preocupado. Guiaram-nos para o telhado proibido da casa 47 e a esquina do cano quebrado. Em cada vértice, uma rica vista que a contorna e espreita os escondidos. Do Morro da Conceição, se vê um Recife lúdico. Ao subir as ladeiras é melhor não voltar. O resto do mundo não é tão bonito de verdade. Eles vêem as casas tais como formigas, os prédios que fingem ser barcos remando para o lado oposto, sem rumo, nadando sobre as mazelas da cidade. O sol se põe do lado esquerdo do quadro, completando o cenário e abrindo a cortina para o ensaio do céu naquele pedaço da capital. As estrelas entram e a noite dá fim ao jogo de futebol no campo da praça. Os jogadores de dominó trocaram as peças por umas cervejas geladas numa mesa amarela de plástico. Mais um sorriso de um morador que se satisfaz em nos ajudar.

Todos se conhecem. Esta noite alguns se encontrarão no Bar da Geralda, outros no Conselho de Moradores e vários deles vão à missa agradecer à Nossa Senhora da Conceição pela proteção quase exclusiva. Esbarrarão, esses, em alguns turistas e gente lá de baixo. Lembra-me minha Campina Grande da infância, cheia de vizinho, poucos carros e várias mesas na calçada.

A vista do Morro revela um Recife que parece ignorar sua beleza. Será a beleza do resto da cidade vista do morro ou a beleza do morro que deixa a cidade mais bonita?

Descubro, meio que sem querer, que o inverno afasta os turistas de lá. Franzo os cenhos e me indago se em minha cidade faz frio. Me desfaço: Em Recife tem inverno e eu nunca senti de verdade. Uma cidade dentro da outra. Sinto uma brisa fria vir de um horizonte sem andares de concreto no meio do caminho. Olho para trás e procuro meu prédio naquele amontoado cosmopolizado intocável e longíguo que inveja o silêncio da casa da Santa. Volto ao pedaço da minha infância no alto da ladeira e sigo viagem. A descida de volta dura alguns minutos, mas vários na linha do tempo. De repente, as buzinas, as gangs de carros, motos e muito barulho. Os transeuntes se ignoram e ninguém se arrisca a viver pelas ruas e calçadas. Não há atores de verdade para lentes em busca de vida.

Refaço-me: há muito calor em Recife. Para se aquecer, basta entrar à direita onde a placa verde indica: Morro da Conceição.

sábado, 1 de maio de 2010

Curto- circuito

Sexta feira. Uma enorme enxaqueca me faz companhia. Cansa. O mundo, às vezes, cansa. Mergulhei os ouvidos na água, hoje, para não escutar o barulho da rua. Que sensação gostosa essa desse mundo mudo e submerso. Tomei cuidado para não afundar nos meus devaneios internos e voltei à realidade seca.

Acontece que perdi meu celular um dia desses. Aí começa assim, a moça da Claro oferece um aparelho gratuito para eu me sentir privilegiada. Mais uma estratégia das operadoras telefônicas para nos ludibriar.

- Não tem sem ser Itouch? Esse negócio de dedo na tela é muito complicado.

Só Touch pra lá, Touch pra cá… Precisei aderir a essa tal modernidade. Por fim, a moçinha ratificou que as ligações seriam bloqueadas assim que o limite fosse excedido. Discando à vontade, confiando no bom negócio. Porém, parece que não li o contrato direito e esse tal serviço só é feito a partir do terceiro mês. Resultado: pagarei o quádruplo do que costumo. Xingo a Claro, os eletrônicos e toda a modernidade. Meu pai entra com sua frase costumeira: São apenas máquinas, a culpa é sempre de quem as opera.

No carro, tento ativar o Bluetooth e quase bato. Mais uma tentativa vã de deduzir o que não vem no manual. Da janela, sob o sol quente, lá está o homem que não me sai da cabeça. As costas negras e suadas, num esforço quase sobre-humano de fazer andar sua cadeira de rodas para chegar ao outro lado da rua. O carro do lado buzina. O vidro fumê não me deixa identificar a pessoa cujo tempo é precioso demais para não esperar um minuto pelos braços fortes e ágeis que carregavam, além de membros estáticos, um mundo intolerante.

Lá se foram, o homem em sua corda bamba para enfrentar mais uma árdua travessia e o carro escuro azedo com sua tecnologia de ponta. Meu pai tem razão, a culpa é nossa, dos operadores. Desisto do Bluetooth e sigo com raiva, muita raiva de um mundo que poderia facilitar a vida do cadeirante pobre com bizarrices tecnológicas. Mas prefere criar buzinas e Itouchs para formar consumidores que se deixam enganar e transformar almas em máquinas modernas e amargas.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Querida Rita

- Brí, escreve sobre isso.

Era 08 de maio de 2009, quando seus olhos verdes de jardim me impuseram esse desafio. Desde então, certa fobia às páginas em branco me foi criada.

Um dia, uma linda Ester me contou o que algum escritor falou sobre o baú de lembranças que levamos com a gente. Essa caixa mágica guarda as pequininíssimas coisas da vida: frases, olhares, momentos, conversas, sentimentos que outrora ousamos ter. Afinal, nós, meros mortais, nunca seremos capazes de lembrar tudo que nos ocorreu. É preciso um dispositivo poderoso que armazene, ao menos, certas horas essenciais na nossa trajetória.

É muito bizarro quando certo momento lá trás lhe foi incrivelmente importante e a pessoa que lhe acompanhou nem lembra. Isso vive acontecendo. Quando me contam dias engraçados sob uma narração empolgada, eu me esforço para reviver, e nada vem à mente. Ou, por exemplo, quando lembrei a uma amiga algo que foi de extrema importância na minha sanidade mental: bem novinha, eu contei à Júlia de uma voz que eu escutava, ou achava escutar, todos os dias antes de dormir e morria de medo. Ela então, disse-me que, com ela, ocorria o mesmo ritual. Senti-me incrivelmente confortada e todo dia de noite imaginava minha amiga sentindo o mesmo pavor e tudo melhorava. Alguns 10 anos depois lembro Júlia desse protocolo muito normal que supostamente nos acontecia. Ela franziu a testa, sorriu e negou passar pelo tal ritual, nem mesmo lembrava ter me confortado daquela maneira. Uma década depois me sinto, então, uma criança incrivelmente anormal e, pela primeira vez, penso “que diabos era isso que me acontecia?”. A reflexão veio tarde em questão de tempo de vida, mas na hora certa para eu não surtar. Para Júlia foi uma mentirinha saudável de criança, sem muitos afins. Para mim, algo cultivado bem no fundo, um bem imensurável. Minha companheira fazia jus ao seu posto.

A coisa fantástica é que, às vezes, essas caixas se encontram. É uma delícia quando criamos ciência que o baú de memórias de outra pessoa guarda um momento que foi igualmente especial. E foi isso que aconteceu no dia cujo deu início a esse texto. Aniversário de Carlinha, roda de amigos, violão, dança, gargalhadas e uma intensa cantoria. Se havia males para espantar, o fizemos com o auxílio de um escudo contra energias negativas que pairava sobre nós. Essas sandices abstratas que nos substanciam. Como disse Manuel De Barros “as coisas que não existem são as mais bonitas”. Tão lindas que extasiam o coração e dá uma vontade de recitar amor aos presentes que nos enche de alegria, mas, claro, as declarações se limitam a um olhar discreto e despercebido ou um pensamento cheio de vida, mas que se julga sozinho. Foi então que nesse momento de pieguisse particular, Ritinha me olhou e postou o desafio de escrever sobre aquele momento. Julguei minutos antes que, ocupados em se divertir, ninguém ali pararia para pensar o quanto bonito é esse negócio de amizade e de horas que, de tão simples, nós fazem tão bem. Mas eis que estava errada... Esses pensamentos podem sofrer de solidão nas cabeças alheias, mas existem na mesma proporção de horas felizes.

Desde então, me certifiquei da minha incapacidade em escrever sobre certas coisas genuínas, boas e tão importantes. As páginas em branco destinadas a esse desafio ficam sempre da mesma cor ou rabiscadas de tentativas inúteis comparadas à grandeza da intenção. Esse ofício de traduzir as sensações gostosas e tão especiais da vida deixo para os olhares discretos e os sorrisos amorosos. Aqueles que Ritinha me abriu a mente para não deixá-los despercebidos ao meu lado nas boas rodas de conversas em uma noite de amigos.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Que saudade do domingo

Entre o corre-corre das pernas grandes, no meio da praça de alimentação, dá-se início ao show: uma criança faz do chão sujo seu parque de diversões, das luzes incandescentes, os holofotes, e todas as pessoas ao seu redor, o público. Nos adultos surgem, discretamente, sorrisos carinhosos. Percebi o que me atrai tanto numa criança: sua virgindade no quesito realidade. O olhar fantasioso delas brota, em mim, um enorme desejo de voltar no tempo.

A responsabilidade e a falta de tempo acabam com pessoas. Quando eu era pequena, o único encargo que tinha era almoçar com meus pais na mesa da cozinha. Tomada pelo desejo rebelde infantil, sempre tentava me livrar desse ofício. Porém, nunca me era concedida a regalia de fazer refeições ao mesmo tempo em que via TV na sala. Nos dias em que, por ventura, não acontecia o tal almoço familiar, enchia o prato e me deliciava por horas diante de algum programa divertido. Todo mundo reclamava que eu comia muito devagar, mas, para mim, era um exercício de liberdade.

Agora, meus almoços devem durar exatos 15 minutos, isto é, quando acontecem. E não existe mais a possibilidade de driblar as responsabilidades. Mas sempre faço questão de sentar-me, ligar a televisão e, nem que dê tempo apenas para os comerciais, desfrutar de meus míseros momentinhos de liberdade. Nos dias de alegria, quando, por acaso, surge tempo, demoro uma hora nesse ofício e puxo para os programas sem conteúdo que dão sopa essa hora da tarde... Ai como me cheira a infância.

Antes, o domingo era uma delícia: dia de ir à banca comprar “turma da Mônica”, sair com a família, assistir filmes todos juntos, sushi com namorado, de aprender a cozinhar, de café e cinema com as amigas. Eu amava o domingo. Agora, esse dia tão bom, virou o tempo que de fazer tudo que não deu durante os dias úteis, e todas as coisas gostosas de viver no tempo livre tem um pensamento como pior inimigo: “tenho tanta coisa pra fazer depois disso.” A responsabilidade deixa as pessoas mais chatas, isso eu já tinha idéia, mas tirarem meu domingo... Foi crueldade.

“Mãe, olha a bolsa do Ben 10 dele!” Sentada na sala de embarque, observo uma cena grandiosa ganhar palco: três crianças se conhecem, falam de seus amigos da escola e ficam íntimos dos brinquedos que a bolsa de um deles abrigava. Nem percebiam que, ao seu redor, uma platéia deliciada sorria quieta e nostalgicamente. Eu tentava lembrar a última vez que almoçara em casa.