quarta-feira, 30 de março de 2011

A arte de macaquear

Sérgio Buarque de Holanda já havia me alertado (curioso o fato de eu achar que as linhas lidas são, na verdade, confissões vindas de amigos íntimos) para o insistente vício brasileiro: “macaquear” as vidas alheias. Para ele, os verde-amarelos estão sempre a
imitar a cultura dos outros países. Uma expressão da nossa conotativa baixa auto-estima. E digo mais, brasileiro importa até a dor dos outros, sem ligar para a sua própria. A omissão das nossas próprias mazelas, que, uma vez olhadas de perto, nos arrebatariam a alma e o coração.

Olhamos a tragédia do Japão, tanto sofrimento e carência. As empresas fazem doações, o Brasil todo se comove e sonha como seria ajudar, de perto, o outro lado do planeta que chora. É a coisa certa a se fazer. Se o mundo não se unisse nessas horas de dor, então tudo iria, de fato, por água a baixo.

Mas e o Brasil? Em que a África está na nossa esquina? Não falo dos brasileiros das tragédias, em que o país se mobiliza, aos trancos e barrancos, para dar suporte. Digo do Brasil de todo dia, do caos inflamado do começo ao fim. Do sofrimento ao qual fechamos o vidro porque já é rotina. Talvez falte sangue-frio para abraçar as ruas sem esgoto, as crianças que trabalham na hora de dormir e as milhares de pessoas que passam fome na terra dos frutos. Toda essa caridade à dor que vive longe serviria ao deus-nos-acuda que está quente, bem perto da gente.

Macaqueando o que disse uma vez Nelson Rodrigues, brasileiro gosta mesmo do negro que vive longe, o negro americano. Dos obamas tropicais, ninguém que saber.

sábado, 12 de março de 2011

Baile de Máscaras

Ela usava um vestido preto de bolas brancas, de um forro tanto quanto exagerado, que deixava seu corpo fresco naquela semana quente de fevereiro. No cabelo negro e liso havia uma tiara espalhafatosa e angelicalmente combinada com a roupa, de modo que acomodava as madeixas numa arrumação assimétrica de uma beleza pueril. Ele, parecia mágica, postava-se com os mesmos tons da aquarela da menina a quem pegava pela mão. Ela se imaginou na Europa dos romances, a Colombina disputada e ele o Pierrot apaixonado. A história chegava a melhor parte, a hora da possibilidade do sonho, o final feliz do conto invejado. Nada poderia dar errado naquela terca-feira gorda de felicidade.

Ele não estranhou a maquiagem histérica, o glitter, o pó e a tinta destacavam os olhos verdes escuros que brilhavam com o sol. Ela ignorou o chapéu ridículo que ele escolhera sem nenhum estilo. Dançaram juntos sem música, se abraçaram sem pudor e se beijaram tão forte que era difícil saber quem era quem naquele momento de amor. O cabelo liso pertencia às mãos grandes que tentavam roubar pra si o corpo da amada. O pescoço másculo era seu porto seguro, no qual se apoiava sem medo, segura que não iria ao chão, apesar de ter os membros fracos de prazer. Olho com olho, nariz com nariz. “Como ela é linda” pensou ele. “Eu o quero pra sempre” suspirou ela.

E no auge daquela dança sem trilha sonora, tal como se finalizam os grandes atos e peças teatrais, chegava a hora do gesto final que compõe os grandes duetos. Na hora que o homem gira a parceira em repetidas rotações, levando seu corpo para longe como quem afasta, para num segundo depois trazê-lo ao aconchego de seus braços. E ela rodou, rodou e rodou, tal como as mulheres do filmes de amor e os casais dos finais felizes das óperas, certa que seria trazida ao peito firme do homem que a esperava. Mas não foi assim. A corda que deveria levá-la de novo se partiu e ela se quedou imóvel, vendo os lábios vermelhos e voluptuosos do amado darem um sorriso charmoso, porém, agora, indecifrável. O final de uma história sem tempo para ser vivida chegou de fato.

Ela não era Colombina, ele não era Pierrot. Era uma simples terça-feira de Carnaval.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Cru e Pálido

A morte cala. Cala enquanto deveria liberar as palavras prisioneiras das lembranças.

Cala porque desassossega sensações que se julgavam enterradas. E se eu não fosse desse ofício apaixonada, afundava o esforço de ater-me aos meus maiores novelos, emaranhada. A morte tornou o prazer em sacrilégio. Achou levar com alvedrio à cova abençoada, o amor de tanta gente preso às vidas sufocadas. Esse corpo que ainda vive viu morrer de si uma parte tão amada.

...

Agora tudo é mortal. Antes, havia a dúvida nas entrelinhas. O mundo me parece, enfim, tão instável, e eu tão impotente. A morte tirou de mim a minha crença infantil num final feliz. E o pior de tudo, arrancou brutalmente do meu corpo, a força inigualável das palavras. Quanta coisa a gente quer fazer e não faz, quanta coisa quer ser dita e não é. Pra depois vir a morte e jogar em planos sujos, a nossa incapacidade de viver.

Logo ele, tão forte. Já dizia seu codinome Imperador, deixou a certeza que foi muito antes de fazer todo o bem que arquitetava. Lá estava ele, distante, reinando um trono tão seu e tão imortal.

As palavras, outrora tão vivamente livres, agora tão arduamente decifradas. Agora não tem mais Tio Benito a tecer comentários sobres meus textos, a incentivar a minha vontade de viver das palavras, e a encher meu coração ao se dizer orgulhoso da sobrinha que era sangue vivo do seu sangue. Foi sem saber, que alguém bem longe, falava fascinada do seu modo de viver e esperava ansiosamente por suas repentinas aparições na minha vida. Foi sem saber que há muito planejava com cautela escrever o tamanho da admiração e do desejo de ser um pouco do que ele é, mas sempre deixava pra depois.

Agora eu entendo o som aflito das palavras que estão condenadas ao anonimato. Como não há pior tristeza, à morte resta algum sentido. Que o prenúncio da Inesperada, plante em nós uma vontade louca de viver e sair gaguejando dizeres doidos para ganhar corpo. Que a morte sirva para dar luz ao grito forte da aparente escuridão do coração de toda gente. Que as almas ingênuas prevejam a dor da solidão e não se condenem a chorar o amargo do não dito.

E esse texto, por mais que ajude a tirar o peso que ando carregando, de tão fraco, tornou-se pálido.