segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Serás por eles, por ti morrerás.

1944. A primavera acabara de chegar e naquele dia o sol raiava com a dor de luto de mais alguns judeus, deficientes e outros que haviam sido mortos enquanto a lua sangrava na noite anterior. Ele acordou, já havia tomado seu café e repassava as perguntas na cabeça. Fitava o espelho treinando as faces ameaçadoras, sua mão tremia e a caneta prata, guardada para dias especiais, perdia a tinta barata pelo suor excessivo de sua mão. Tornara-se jornalista há 3 anos, e conseguira um emprego num dos mais conceituados jornais há 12 meses. O trabalho, assim como a missão daquele dia, era mais um presente do diretor ao pai do rapaz. Para o jovem de óculos grandes, testa enrugada pela miopia e alguns cabelos brancos pelo estresse perfeccionista, que nada condizia com a lógica jornalística da época, a mídia era uma grande arma da força nazista. Era ariano e privilegiado, mas detestava todo o sistema violento e conturbado alemão. Havia sonhado com essa oportunidade e pretendia revelar todos os podres daquele a quem mais nutria ódio. Seria renomado, aplaudido e jamais esquecido por conta daquele dia que havia acabado de começar. Ouvira falar da habilidade de discussão e persuasão do entrevistado, mas não se deixaria levar, mesmo que todos os outros se vão nas ondas, ele iria contra a maré. A ditadura de seus pensamentos e idéias seria mais forte que a repressão de qualquer realidade.

Chegara ao escritório do Terceiro Reich da Alemanha. Um quadro mal pintado e inacabado, uma estante de livros, um ar escuro e ébrio inundava a saleta. Habituara-se a observar as testas, pelo desconforto da aparência de sua própria. A testa daquele homem, a quem passara a noite ensaiando palavras de afronta, tinha rugas de dores passadas, abaixo delas, quase que escondidos, os olhos transpiravam um sentimento mesclado. Conseguiu respirar raiva, muita raiva. Havia outro cheiro sem classificação, um quê hipnotizante, era impossível desprender daquele olhar enigmático, que o fazia balançar a caneta carente de anotações. Quando ousou revelar o começo de seu texto ensaiado, foi interrompido pela voz suave de Hitler, que falava de como saudosa era a cadeira que estava do lado da que se postava sentado. Era nela que costumava sentar seu querido antigo companheiro de trabalho, que jazia num importante cemitério germânico. O jovem rapaz pensava em como o velho poderoso julgava seu trono importante a ponto de cometer tantas atrocidades e ousou iniciar uma fala, mas não conseguiu terminar.

- Queira ter o prazer de sentar-se nessa tão prezada cadeira, disse Hitler.

E lhe estendeu a mão como num convite irrecusável para seu mundo, que num segundo tornou-se tão acolhedor. Quando se deu conta, o entrevistado havia mudado seu discurso para a importância do jornalismo e da sensação de privilegio que tinha de ter um representante de um grande jornal em seu gabinete.

O segundo aroma desconhecido de seu olhar revelou-se: carisma. Era como se para aquele homem, o corpo decadente e repulsivo tivesse sido escolha do destino, mas sua voz, seu olhar, o balançar de sua cabeça, e o dançar de suas mãos fossem bordados nas mãos de uma fina e linda mulher. O jornalista balbuciou o questionamento de alguns feitos do presidente, havia mudado o curso do interrogatório, sem saber muito o porquê. O algoz entrevistado falava da recente descoberta do colete salva-vidas, resultado da competência de seus homens e da utilidade de seus conhecimentos. O relato da entrevista ganhava corpo: omitira-se a parte de que as várias descobertas levavam bagagem de sangue e mortes de cobaias involuntárias. O jornalista ganhava alma: omitiram-se seus ideais, era ciente de todas as calamidades, mas as vestia de nacionalismo e amor pelo país. Aquele homem que de muitos choros se alimentara, sorria cordial, e ganhava aplausos em forma de letras. "Ora, se a Alemanha ariana o apoiava, muita certeza o povo deve ter." A tarde chegou ao fim e o principiante jornalista se viu no começo, entrara para o mundo real. Aquela tarde nunca, de fato, seria esquecida. Mesmo que para a Alemanha fosse apenas mais uma reportagem confortadora, para ele, o marco inicial de sua vida. Era, enfim, jornalista. Não poderiam estar mais orgulhosos o Reich e todos os outros governantes de uma nação.

Um comentário:

bolalá disse...

Isso é fato ou ficção?