terça-feira, 4 de agosto de 2009

O medo nos corrompe

Garanhus recebe, todos os anos, 10 dias intensos de quebra de monotonia. No último mês, eu os recebi. Foram esses o bastante para causar um choque de realidade na volta para casa. Foi, então, que percebi: O mundo se divide entre os habitantes de cidades grandes e de cidades pequenas. Um homem que uma vez faz parte do caos da efervescência da globalização, do asfalto cosmopolizado e da urgência dos grandes centros, para sempre terá uma metade hostilizada dentro de si. É muito possível que o ser humano possua em sua natureza, bondade e cumplicidade, mas o medo corrompe a nossa natural cordialidade.

No primeiro dia do Festival de Inverno, chegamos à ladeira cheia de casas simples e calmas, a nossa era a fonte barulhenta e abrigo de uma média de 30 pessoas sobreviventes a temporada. Como toda boa tradição de casa lotada, a água não vinha. Como toda boa sem-vergonhice jovial, a idéia de pedir um tempinho no chuveiro alheio veio pertinente. Encontramos, às 20h da noite, Dona Prazeres e sua filha simpática que nos cederam sua casa. E assim, das nossas necessidades, vários personagens desenharam histórias mais completas e peculiares ao longo da viagem. Nossa amizade com Gel, diminutivo de Maria de Jesus, uma garanhuense de 50 anos, foi a mais linda de todas. Primeiro dois de nós haviam entrado em seu lar para usar o banheiro e saíram de barriga cheia por conta de um almoço memorável, depois conhecemos sua fonte de renda: um bar humilde do qual viramos freqüentes assíduos. Como o banheiro do local era um canto da parede escondido por uma pequena cortina, ao lado da área onde sentávamos para tomar cerveja, Gel sempre oferecia sua casa às meninas, onde também ouvimos as histórias das suas filhas e da cidade. Os agrados dos moradores não acabavam: um outro homem que ao ver os visitantes no bar da amiga trouxe de sua casa um atraente sarapatel, além dos petiscos de graça, de mais banhos e conversas jogadas fora. O que me assustava todos os dias era a falta de hesitação que aquele povo tinha em nos ajudar. As relações que mantínhamos com a vizinhança seguiam um padrão: uma saudação cordial, um sorriso, um gesto com as mãos de “Pode entrar!”, uma conversa afiada e, por fim, um “volte sempre”. Ao comprar queijo numa vendinha próxima, um senhor me perguntou se eu estava naquela casa do samba corrente. Ao fazer que sim, ouvi os mais gentis elogios às pessoas que “faz amigo fácil” segundo ele. Nunca imaginaria que a casa onde às 5horas da matina a música ainda era alta, seria tão bem recebida por um senhorio tranqüilo. “Engraçado” Respondi. “O que mais se comenta lá em casa é o quanto o povo daqui é gentil e simpático, não fazia idéia o quanto isso me impressionaria”. Meu comentário sucedeu um sorriso homérico e a ingressada de outro cliente na conversa. Terminei minha compra com o coração completo de ouvir o quanto eles gostam dos recifenses, dos jovens, da simpatia e o quanto seremos, para sempre, bem vindos. Mal sabem eles, tudo que recebem é conseqüência da cordialidade sem fim que transmitem.

Voltando à cidade, parada no engarrafamento no fim da tarde, dois homens que andavam na rua começam a falar comigo. Surge, então, um diferente padrão de relacionamentos: Desconfiança, medo, alívio, vergonha. Os dois sujeitos procuravam me alarmar para um problema no meu carro. Claro que, presa às minhas inseguranças, havia arquitetado como escaparia do assalto. Sigo, rodeada pelas luzes urbanas, o corpo calmo, “não foi dessa vez”. Penso em Gel, sentada no banco de seu bar, nos bêbados do bairro cantarolando um samba forte, na garrafa de vinho comprada fora que levávamos para pôr em sua geladeira, na liberdade dos clientes, no rosto triste de Gel ao se despedir, no abraço asfixiador que um boêmio da região nos deu na última noite. Ouço o som da buzina, o farol está verde. Ai que saudade de Garanhuns.

Gel, sambinha e Zé Maria, o bêbado de sempre, em pé.

2 comentários:

bolalá disse...

Não diria que são só as pessoas de cidade pequena que têm esse tipo de cordialidade. Quando fiz Campanha do Quilo na favela, vi e senti a mesma coisa. Acho que vem da humildade honesta.

laís sampaio disse...

ganhei um novo olhar para meus 10 dias em garanhuns.
me completou!