quinta-feira, 25 de junho de 2009

Vento amigo

Do meu quarto, agora, ouço os sons do casamento que vem da sala:

Música de final de filme, cheiro de cigarro, interruptores, chinelos, geladeira, lençol.

- Bel, acorde minha filha, o filme já acabou. Diz meu pai. A idéia de oficializar uma união pelo casamento, a meu ver, carece de liberdade. Receio da rotina, da estabilidade emocional, da falta de um pouco de solidão. Mas, estranhamente, perco esse foco aos poucos quando pequenas situações (e ai a inutilidade de chamar de pequenas) comovem meu lado mais frígido.

Hoje meus pais se apaixonaram de novo, ninguém viu, apenas eu e o vento. Amor é vento leve, intruso, ambiente, incolor.

Era um dia comum, televisão ligada, jornal na mesa, ela e Fernando Pessoa no sofá, ele com seu cigarro, futebol e Tv. Eis que surge o prefácio: uma conversa trivial. Ele começa a falar sobre uma queda homérica em uma pelada quando era jovem.E tudo começou: - E foi, Braga? Com aquela voz escolhida por ela pras frases empolgadas. De repente, vieram os gestos, os risos, a ligação, o interesse, a exaltação. Eis que aparece a testemunha, eu. Chamou-me a atenção a forma como se olhavam. Não é fácil enxergar alguém que enche seu campo visual 24 horas por dia, mas ali havia uma sintonia tão visível que a retina não criava obstáculos. Eram dois mutantes capazes de, de fato, se olharem. Então tudo se coloriu. O amor veio ao meu encontro dizendo que é rotina, dia-a-dia, algo a que a paixão não sobrevive. Amor é sutil, imprevisível, terno. Paixão é avassaladora, traduzível, forte. O ar da sala se encheu de uma energia positiva extasiante. Aos olhares que se cruzavam do amor barato e cumplicidade, havia o meu, de admiração e estranhamento. Como assim, depois de 29 anos grudados, ainda há estórias a se contar? Risos a serem causados? Atenção a ser dada? Foi aí que percebi que o amor se recicla, se renova e emancipa nos momentos banais. Meus pais se reapaixonam várias vezes e nem notam. A idéia de convenção estagnada que tempera o casamento se desvaneceu. Existe, ainda, a grande sacada do matrimônio: o amor que brota da rotina. Aquele que se vai é porque não foi entre esses seres dotados do poder bizarro de se entreolharem.

- Bem vindos amigos da Rede Globo... Falava certa voz desmancha-prazeres do lado esquerdo do cômodo.

Eu voltei a minha refeição. Ele ao seu esporte, cigarro, seu estádio, celular, jornal, meninos, trabalho, preocupação, estudo, inglês, empresa, idéia, livro, tela, piada, notícia. Ela às suas poesias, irmãs, família, jantar, basquete, sofá, emprego, zelo, fofoca, risada, telefone, despesa, comida, cachorro...

- Pai, como é mesmo aquela história daquela queda?

24/06/20009

3 comentários:

Lorena Tabosa disse...

O amor é mesmo o rei das metamorfoses!

bolalá disse...

Muito bom o texto. Adoro os personagens.

Mudando de assunto: já descobriu o mistério, Agnes?

Ellen Cocino disse...

o jeito dos braga's de ser.
eles são lindos e você, mais ainda. Por que foi dessas paixões, idas e vindas sempre, que você chegou. Suas palavras bem encaixadas fazem de você única.
lindas palavras amiga, amei! :)